Os despatriados

Os artistas são as mais despatriadas das criaturas inventadas por Deus. Há algo na gênese dessas almas que as faz mais obedientes ao abstrato império da arte do que às convenções sociais e ao establishment, principalmente aqueles que tentam encarcerar-lhe o espírito libertário e abafar-lhe o grito inquieto. Não raro, os artistas são subversivos, mesmo que alheios à luta política. Para criaturas habituadas à liberdade anárquica da experiência artística, sentir a pesada e truculenta mão de um estado repressor é um martírio contra o qual precisam fazer guerra.

É bem verdade que não há registro na história de que os sensíveis amantes da arte tenham vencido alguma guerra. Mas também não é para isso que eles servem. Imagino que Deus os fez para preservar algo da insanidade que melhora o mundo, que se rebela ante o conformismo narcotizado da maioria, que estremece a lógica que sustenta os brutos no poder, que fermenta o germe das revoluções.

Sondando as misteriosas táticas de Deus, essa alma despatriada não me parece, portanto, coisa do acaso. Porque a devoção à arte não lhe destitui o amor à pátria; antes torna o artista uma entidade universal, um ser que não restringe suas fronteiras aos limites geopolíticos, e ganha imunidade aos nacionalismos doentios que engendram o preconceito e a xenofobia. Indo aonde a arte o chama, o artista carrega consigo os mundos em que mergulhou. Vira um profeta de verdades incômodas.

Prova de que a arte é um universo transnacional é a violeira Helena Meirelles, que já deixou pra trás a poeira deste mundo. Sobrevive, porém, o exemplo comovedor de uma pantanense que transformou uma herança maldita – era pobre, analfabeta e mulher – numa vida de celebridade internacional, ainda que tardiamente conquistada. Antes disso, no entanto, Dona Helena teve de subverter as normas de sua época para exercitar sua “cidadania” artística. Aprendeu a dedilhar a viola sozinha, escondida dos pais, pois, mesmo na pobreza, o enredo do papel feminino naquela sociedade já estava convencionado. E não incluía, em nenhum momento, a possibilidade de uma carreira artística.

Por amor à música, tolerou a vida agreste. Casou três vezes, teve onze filhos, foi parteira, lavadeira e prostituta. Mas no gozo da vida em seu capítulo final, quando a viola pôde, enfim, entoar a cantiga alegre dos dias, e a lhe render a honrosa inclusão na lista dos 100 maiores guitarristas do mundo, Dona Helena viu sentido em toda a agrura da existência. Na arte de sua música, reencontrara sua pátria.

Penso que é isso o que move esses homens e mulheres. Alguns querem que a pátria íntima, feita de arte, seja a pátria de todos, porque encerra uma realidade de beleza criativa e de felicidade. É por isso que Nietzsche dizia que a vida seria um erro sem a música, porque a arte é que redimensiona as experiências humanas. Foi o Blues, no berço norte-americano, que salvou a sanidade dos escravos sulistas, ao destilarem na melodia chorosa, mas reconfortante, a tristeza da alma cativa.

Há, porém, os que preferem viver simplesmente no gozo da arte, sem preocupações de fazer guerra para instaurar um mundo de beleza. Cantam seu verso, dedilham sua melodia, imprimem as cores de sua alma, ou vertem o verbo que lhes passeia a mente; preenchem assim a vida de perfume artístico. Que o resto a história faça! Para Deus, por fim, é possível que essas almas estejam aí para cumprir a finalidade de semear uma outra versão do “admirável mundo novo” que, para ser melhor do que o de Aldous Huxley, precisa despatriar os homens para povoar a humanidade.

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