A teimosia de Maneca

Nestes dias contemporâneos, a novela se consagrou como o palco épico da natureza humana. Ali, desfilam os sete pecados capitais e se perpetua a fantasia infantil e maniqueísta de um mundo dividido entre bons e maus. Alguns milênios atrás, quando o homem sequer sonhava com a caixa mágica, o cenário das tragédias humanas era o Olimpo, onde as divindades personificavam, sem qualquer vestígio de vergonha, as maldades mais vis e os interesses mais mundanos. Embora o ser humano fosse quase sempre um mero figurante no teatro da mitologia grega, alguns de nossa espécie souberam tirar os deuses do sério.
Entre esses, Sísifo foi o mais astuto entre os mortais. Mestre da malícia e dos truques, logo despertou o mau humor de Zeus, o manda-chuva do Olimpo, que incumbiu Tânatos, o deus da morte, de livrar-se dele, levando-o para Hades, o mundo dos finados. Mas o plano fracassou diante da esperteza de Sísifo, que acabou aprisionando o próprio deus enviado por Zeus, o que deixou o universo em polvorosa. Afinal, enquanto prisioneiro do astuto rei de Ephyra, Tânatos não poderia mandar ninguém para o quinto dos infernos. Hades, irmão de Zeus e senhor do mundo dos mortos, reclamou do prejuízo e exigiu providência.
Enfurecido, o senhor dos céus destacou então Ares, o deus da guerra, para dar jeito no abusado. Libertou Tânatos e finalmente levou Sísifo para Hades. Antes, porém, o humano espertalhão fez a esposa jurar que não iria enterrá-lo após sua morte. Quando acordou já no Além, Sísifo argumentou que precisava retornar à terra para repreender a esposa por não ter realizado os funerais, pois assim não poderia ser considerado verdadeiramente um morto. A estratégia matreira lhe rendeu o retorno e a permanência no mundo dos vivos por mais alguns anos. Porém Zeus percebeu a malícia do mortal e acabou de vez com a armação audaz. Hermes, outro deus, foi designado para conduzir o insolente à força até o reino das sombras. Se fosse hábito entre os gregos, Sísifo bem que poderia ser alçado à condição de “santo dos vivos”, tamanha a tenacidade com que insistia em residir nos domínios de Gaia, a Terra.
Diz a mitologia que Sísifo nunca mais voltou aos mundo dos vivos, fadado que foi à punição eterna. Se deixou herdeiros do lado de cá, acho que Manoel Ladislau Pires, o Maneca, poderia ser um deles. Aos 97 anos, ele dribla Tânatos como fizera seu possível antepassado. Há algumas semanas, soube que seu quadro de saúde se agravara. Na casa da filha Aurora, em Piçarras, todos já faziam exercício mental para aceitar o inevitável: o homem mais velho da cidade estava dizendo adeus ao chão onde nascera. Preso à cama, desmemoriado e perturbado por visões de um outro mundo, Maneca parecia jogar a toalha.
No fim, foi quase um jogo de cena. Minha última informação é que o nonagenário Maneca se recupera faceiramente, adiando o reencontro com Paula, a esposa que não teve a mesma desfaçatez de despistar a morte por tantos anos. É uma vida que recomendaria para um sério estudo sobre a longevidade humana. Os pesquisadores descobririam, finalmente, que o que estica a duração de uma vida não são apenas os legumes que o corpo comeu, nem os quilômetros que suas pernas caminharam. O que amarra Maneca a este mundo é a teimosia de viver. O que os homens da ciência pouco sabem é que a vida se desaloja mais rapidamente da alma que não a deseja e, doentiamente, a pretere por formas sutis de auto-aniquilamento. E Maneca se aproxima de um centenário de existência, porque, como Sísifo, soube seduzir a morte com uma verdade inexpugnável. Só morre quem já está morto. Quem teima em viver, consome até a sua última gota de vigor. E mesmo depois dela, quando Tânatos pensa triunfar, a alma percebe no Além que o gozo de viver não acaba e que a existência tem mesmo de ser como nos ensina o velho Maneca, um ato explícito de teimosia.

Comentários

Anônimo disse…
Gostei!
Bom o texto.
Santa teimosia!
Que Deus o abençoe!
J

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