Reinado Maldito

Tanto já se escreveu e falou do astro pop Michael Jackson que decidi dar também o meu pitaco. Afinal, é sempre mais fácil falar da vida alheia do que expor a própria nudez. Mas o que me incitou a escrever sobre Michael foi o fato de o Rei do Pop personificar, como poucos, a perfeita tragédia de uma alma encarcerada em suas ilusões. Adornado pela riqueza e pela fama, o status de celebridade e a conta bancária milionária deram vazão aos impulsos – muitos deles bizarros - que, na maioria dos meros mortais, são refreados pela própria impossibilidade de dar-lhes realidade. Para Jacko, até os sonhos de uma Neverland puderam ganhar vida.
Aparentemente uma alma atormentada por frustrações de uma infância adiada, assombrada pela figura punitiva de um empresário vestido de pai, Michael tem uma biografia que destila tristeza. Porque foi um homem, ou uma eterna criança em pele de adulto, algemado a uma vida que encarnava a falsa ideia de felicidade. Obcecado pela aparência, ele não se amava, mesmo com tantos súditos a lhe render homenagem e fanatismo. Michael, desde criança, deixara de ser um garoto comum para se tornar um objeto de consumo. E, para sua desgraça pessoal, ele vestiu a roupa de produto e submeteu-se aos valores equivocados da sociedade contemporânea, introjetados, por exemplo, num pai que lhe induziu a distorcer o sentido da vida, segundo o qual sua realização pessoal e destino estariam no estrelato.
O Rei do Pop abrigou em si essa mentira. Pôs seu virtuosismo artístico a serviço dela. Michael foi ou deixou-se ser vítima de uma das grandes maldades da ideia capitalista: a de mercadorizar o talento e, portanto, de tentar dele extrair mais do que poderia dar. O processo criativo tem seu timing próprio, sua dinâmica atemporal, mas o mercado exige uma constância produtiva que a alma humana não pode prover. Frustrado por não repetir o estrondo de seus trabalhos iniciais, Michael mediu-se pela resposta discreta (para os seus próprios padrões) do mundo aos seus últimos projetos. Em vez de mergulhar em seu denso universo criativo pelo simples prazer de produzir beleza e arte, ficou então à deriva num oceano de superficialidades, entretido em distrações como a construção de Neverland, ou mesmerizado pela ideia de um padrão ariano de beleza.
Mas o Rei reconheceu sua infelicidade. Em “Man in the mirror” (Homem do espelho), ele cantou que foi vítima de um amor egoísta e que estava disposto a mudar o mundo começando por si mesmo. Mas o grito artístico de liberdade, de fazer o mundo melhor a partir de si, de romper o castelo de suas ilusões infantis, não foi muito além da canção e das generosas doações filantrópicas. O homem do espelho seguiu a vida de monarca infeliz, enleado numa trama autodestrutiva.
O Rei vivia o dramático paradoxo: amado por milhões, desamado por si mesmo. Não foi surpresa então ver o desastre de seus dois casamentos, o primeiro, com Lily Presley, performático; o segundo, com Deborah Rowe, procriativo. O Rei queria filhos para amar. Parece não ter feito muita diferença. O Rei do Pop, um gênio da expressão artística, deixou muitos súditos, mas nenhum sinal convincente de que foi feliz. Foi um reinado fantástico para seu séqüito, maldito para o seu monarca. O Rei do Pop foi um escravo de suas miragens, ator de um fim melancólico, muito distante da imagem do saltitante e carismático Mickey cantando "ABC". Ali estava, definitivamente, uma criança que nasceu para cantar, não para reinar.

Comentários

Anônimo disse…
Fantástico!!!

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