A doçura

O curso de todas as coisas e seres é regido pela necessidade. Essa é a lei primordial de Deus. Se algo existe, é porque a necessidade a pariu. Se temos a noite é porque o dia faria da terra um chão causticante, hostil ao eclodir da primeira célula. E por isso a Terra gira infinitamente, para permitir que a luz do sol apareça e desapareça em toda sua longitude, semeando vida em todo canto.

E se somos filhos das estrelas, por que seria diferente conosco? É também a necessidade que regula nossos impulsos, seja os do corpo, seja os da alma. Quero falar desses últimos, pois, por serem feitos de uma qualidade pouquíssimo conhecida, ainda paira uma gigantesca sombra sobre os pulsares do espírito.

Sim, fogem-me as estatísticas, mas a maioria das pessoas não se apercebe que, por detrás de cada decisão ou evento de sua vida, por mais desimportante que seja, há ali uma necessidade a palpitar. Pode estar desnuda, explícita, facilmente reconhecível. Ou então ficar dissimulada, disfarçada sob a forma de acaso.

O enlaçar de duas almas é um encontro de necessidades. Raramente as mesmas. Porque, como somos diferentes uns dos outros, temos também necessidades diversas. Uma pessoa afeita aos brinquedos da matéria – esses prazeres que o dinheiro pode comprar – terá necessidade de amar quem poderá lhe prover esse mundo de fruição das coisas. Seus olhos verão os presentes caros que receber como uma expressão de amor. Os que preferem os brinquedos do corpo irão amar aqueles que lhes saciarem os desejos da sensualidade. As pessoas que dão valor às qualidades do intelecto amarão os que irradiarem o brilho de sua inteligência. Já aqueles que apreciam os tesouros morais do espírito ficarão encantados com as boas almas, cheias de mansuetude e sabedoria.

Em todos os casos, o amor une aqueles que se precisam, que se contentam mutuamente em suas necessidades. Por isso, há amores efêmeros e duradouros, rasos e profundos, egocentrados e altruístas. Afinal, que eternidade esperar de um amor que juntou seres cujas necessidades estavam concentradas no que é transitório, no que se desgasta com o tempo, ou que se extravia numa vida de exageros inconsequentes? Assim que o corpo se degrada ou a riqueza escolhe outro hospedeiro, esses amores desmoronam como castelos de areia, sustentados até então por uma argamassa etérea chamada necessidade.

Ocorre também que, muita vez, a necessidade de um cessa antes que a do outro. Ou então é uma necessidade que dá lugar à outra. Nesses casos, as relações entram em colapso ou se metamorfoseiam. Logicamente, são situações de dor e aflição, em especial quando a alma se sente incapaz de encontrar em outra pessoa a satisfação da necessidade que a amarrou àquele primeiro coração.

Na velhice, quando os brinquedos do corpo já estão desgastados, é preciso que a relação sustente outras necessidades, que preservem o fluxo de amor. Se aqueles corações se uniram tão somente para o festim do sexo, então o amor afrouxará seus laços à medida que o prazer escassear. Poderá, entretanto, restar a saudade desses anos de desfrute, e a isso poderemos chamar de ternura, que talvez baste para confortar os corações até que a morte dizime aqueles corpos que, outrora friccionados, acenderam a chama de um amor.

Todavia, há, sim, a promessa de amor eterno para aqueles cuja necessidade pelo outro não está fixada na temporalidade da juventude nem nos prazeres que se desvanecem ao folhear dos anos, gozos exauridos de sentido quando o ser se aproxima da verdade sublime da morte, que o reduz a suas necessidades elementares de espírito imortal. O amor que pode cruzar a assombrosa fronteira da vida deve ser insuflado por uma necessidade da alma: a necessidade de doçura.

Embebidos no doce líquido amniótico, o ser humano nasce com o paladar orientado: o doce lhe provê a reminiscência da segurança do casulo materno. Talvez por isso tantos depressivos se encham de comidas açucaradas, num ato reflexo de retorno às sensações do útero. Numa outra escala, a do espírito, é também a doçura a necessidade essencial. Amores que nasçam do pulsar dessa ânsia ganham a eternidade. Romeu subtraiu a própria vida porque não mais saberia viver sem sua meiga Julieta. Ela, por sua vez, repetiu o gesto extremo, porque só no Além reencontraria o coração que respondeu à sua ânsia por doçura. Quem necessita dessa beleza para amar e dispensa todas as passageiras ilusões do mundo aparente habilita-se a esse amor; um amor que suporta todas as rudezas da vida e sobrevive a todas as dores, pois vibra, no peito, um sentir supremo que cobre de sorriso o caminho pedregoso em que a vida nos lança, num teste final de felicidade.

Comentários

Izilda Garcia disse…
....o amor une aqueles que se precisam, que se contentam mutuamente em suas necessidades".Lindo, verdadeiro e profundo.
Beijos
Danielle Garcia disse…
Lindo...obrigada por compartilhar tua docura, sempre!Pena não precisares mais do que precisavas....hehhehehe...Beijão e bom início de ano!!!
Mirian disse…
Estavas especialmente inspirado, Migo!
grande beijo e um inicio de 2011 muito especial!
Caroline Mattos disse…
Doçura é a capacidade que alguns tem de só ouvir, e sempre ouvir os anseios, medos e necessidades de uma alma que está em crescimento, (meio perdida às vezes), e muma eterna metamorfose.Um beijo, com carinho

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