O Sorriso de Saramaga
Bastaram alguns poucos anos para se perceber. Assim que
despontaram, a profecia de Deus se esculpiu no semblante de Saramaga. Os
dentes, estrelas de um sorriso largo, generoso e incopiável, desnudavam-se em
sua boca, inteiros e desavergonhados. E
logo ela se convenceu, a menina de olhar curioso, que o destino tinha planos
para seu sorriso. Porque, de fato, aquela boca fora caprichosamente concebida
para uma missão das mais excepcionais.
Era seu sorriso armar-se - o que fazia com humilhante facilidade - e um sol
reluzia em sua face. E penetrado por aquela luz, ninguém lhe resistia. Uma
estranha força compelia qualquer um a devolver-lhe o sorriso, a extrair de si
um impulso de contentamento, uma faísca de gozo.
Saramaga cresceu e seu dom formidável construiu-lhe fama por toda
a cidade. Todos queriam ver a jovem do sorriso luminoso. Alguns, mais
entusiasmados, reportaram cura de doenças após a visão do sorriso. Era o que
faltava para que Saramaga se tornasse celebridade nacional e, não tardaria,
figura conhecida em todo o mundo. Até o papa, em viagem pelo País, fez questão
de a receber em audiência. E a foto de Sua Santidade, possuída por um sorriso
jamais visto em sua sóbria expressão, consumou o prestigio de Saramaga, a
mulher do sorriso de Deus.
A curiosidade do mundo a levou a todas as partes. Viajou pelos
mais diversos países, das mais diferentes culturas e religiões, porque seu
sorriso era universal, descarregado de dogmas e profissão de fé. Judeus e
muçulmanos, hindus e budistas, todos queriam sentir o mistério encarnado
naquele sorriso. E isso era tudo o que Saramaga fazia. A inexplicável magia se
repetia, infalível, a todo instante e em qualquer lugar, milhões de pessoas
seduzidas por aquele sorriso salvador, com o fantástico poder de regar o riso
no mais árido dos corações.
Um dia, porém, na remota ilha de Bali - Saramaga amanheceu com uma
pergunta inquieta. E fez algo que jamais fizera. De frente para o espelho, com
seu habitual sorriso armado, perguntou-se se ela era feliz para tanto sorrir.
Pois sempre assim fizera porque distinguia a transformação que operava nos
outros. Fazia-lhes felizes, de tal modo que sorria porque intuíra, desde
menina, que aquela seria sua razão de ser no mundo. Mas depois de tanta gente ela
fazer sorrir, não achava resposta para sua inquietação. E ali, defronte o
reflexo do mais arrebatador dos sorrisos humanos, Saramaga viu escapar-lhe a
virtude do semblante. O sorriso murchou, empalideceu-se, e o sol que o habitava
extinguiu sua luz.
Agora ninguém mais lhe reconhecia. Tornara-se uma anônima entre a
multidão de faces iguais. Todos perguntavam o paradeiro da mulher do sorriso
santo, milhões lamentaram seu sumiço e muitos choraram ao lembrar como suas
vidas tinham sido transformadas pelo mistério daquele sorriso. Perdera ela o séquito, a adoração das massas, o convívio com as celebridades do mundo.
Refugiou-se no cotidiano pacato e sem sorrisos. Fez-se dentista. E alguns anos
depois, já distraída na vida inglória, foi surpreendida por um sorriso.
Lentamente, como se uma energia voltasse a irrigar-lhe a face, Saramaga teve
uma experiência inédita. Era ela a devolver um sorriso; ela, a sua razão de
ser. E foi assim que teve seu primeiro instante de felicidade, quando sua pouca
virtude, abandonada pelo esplendor de Deus, foi suficiente para desabrochar um
sorriso alheio. Era apenas a sua pouca virtude, e nada mais, que fora capaz de
produzir um sorriso de amor.
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