O fim do final dos tempos
Acompanhei com curiosidade a agitação global provocada pela
previsão apocalíptica extraída do calendário maia. Queria ter dado meu pitaco
sobre o assunto antes da fatídica data do fim do mundo, mas, como infelizmente
não acreditava no extermínio da humanidade, não pude descuidar-me das coisas
mundanas, da rotina comezinha que garante o sustento pessoal e dos que de mim
ainda dependem. Toda expectativa gerada, entretanto, mostra como, passam-se os
séculos, e os catastrofistas estão por aí, sempre alertas para uma promessa que
anuncie o fim dos tempos. Não foi a primeira e nem será a última vez que os
alarmistas irão acionar a contagem regressiva para o Armagedom.
Mas, mesmo descrente da leitura aniquilitória do calendário
maia, o alvoroço global me remete a reflexões interessantes sobre a diversidade
do pensamento humano em relação ao sentido de nossa trajetória. Enquanto uns
fizeram planos preparatórios para o grande dia, buscando a proteção das regiões
altas ou das cavernas, outros fizeram graça da predição. Entre os céticos, é
fácil entender a rejeição à ideia de um fim absoluto, já que não havia iminência
de um holocausto em escala mundial. Agora, por que a ideia de um fim dos tempos
impressiona tantas mentes? Por que se deixam levar pela histeria coletiva?
Pensei em responsabilizar as Escrituras Sagradas por essa
propensão à tese do Apocalipse. Afinal, está lá há séculos, no livro de João,
um amontoado de metáforas proféticas que dá asas largas à mente imaginativa do
homem. Mas prefiro pensar que é o homem que dá sopro à palavra e não o
contrário. Palavra é como semente. Só germina se o espírito abrigá-la, se achar
no psiquismo da alma terreno fértil para vingar.
Tenho uma suspeita, portanto - a de que tais ideias
prosperam mais facilmente num certo tipo de mente. Porque, não havendo razão objetiva e respaldo científico para se predizer o fim do mundo, a promessa de
um Apocalipse só vai encontrar sustentação entre os desajustados e os inconformados, entre os que se rebelam contra
a vida ou aqueles que, simplesmente, têm uma natureza pusilânime, cuja mente se
dobra à força magnética de um discurso mais carismático e, neste caso,
apocalíptico.
A quem ficou em dúvida se poderá vestir a carapuça dos
desajustados ou dos inconformados, deixe-me explicar melhor. Essas duas classes
de pessoas vivem em permanente atrito com as vicissitudes da vida. Para elas,
este mundo é um cenário de agonias intermináveis, de embates fatigantes e
eterna sucessão de frustrações. Assim, o natural desejo desses é pôr fim a essa
tragédia inescapável. Aguardam, portanto, uma revolução do mundo para mudar o
roteiro de suas próprias vidas. Torcem, intimamente, por uma série de eventos
extraordinários que altere dramaticamente o curso dos acontecimentos humanos.
Mas, em minhas tentativas de compreender o pensamento de
Deus, convenci-me de que leis inteligentes e úteis regem a saga do universo.
Não vendo inteligência nem utilidade num suposto plano divino de interrupção da
marcha da humanidade na terra, resisto à profecia de dizimação total. Deus não
improvisa. É de uma obtusidade monstruosa pensar que as atuais misérias humanas
representam alguma surpresa para Deus. O espetáculo de imperfeições do homem
era previsível. Fome, guerra e criminalidade são traduções de um estágio quase
compulsório da trajetória humana. O vale das sombras faz parte da travessia,
pois ninguém há de distinguir o fulgor das luzes sem ter sentido antes a fria
obscuridade da ignorância.
Deus, ao contrário do que presumem alguns, não está
decepcionado com a humanidade e não quer, num surto de desaprovação e fúria,
destruir a obra. Fosse diferente, não teria transformado a natureza num lento
laboratório de concepção e evolução da vida. Deus, em sua obra, fez do tempo
sua argamassa, pacientemente juntando os elementos, organizando-os,
conferindo-lhes formas diversas e desfazendo as combinações que deixaram de ser
úteis à criação. Assim, sendo a terra ainda
uma escola necessária para a experiência humana, tão pródiga de sombras, soa
incoerente um desfecho abrupto para uma humanidade que transita justamente por um
ciclo de despertar moral e intelectual sem precedente.
Não creio que Deus faça mistério de seus planos, impressos
na obra erguida a partir de suas leis. É mais certo que ao homem falte o código
capaz de decifrar os desígnios divinos. Então, ao contemplar o amanhecer na
Praia de Piçarras, uns poderão lamentar a paisagem ameaçada por uma profecia
devastadora; outros poderão ver nele a inscrição de uma verdade: a existência
de seres sensíveis à beleza da criação é uma conquista admirável do tempo. No breve
êxtase de uma visão, todo o sentido de uma odisseia. Outrora grosseira, a
criatura agora sonha e se enternece. A terra ainda é um palco onde o homem tem
a oportunidade de transitar da sombra para a luz, de cruzar a larga fronteira
do ego que o separa do Éden perdido.
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