O último primeiro abraço



Savar, Bangladesh
24 de abril de 2013
8h45min

O mundo ameaçava desabar sobre suas cabeças e, numa ação reflexa, Rachmed estirou o braço sobre Samira. Num segundo, o horror se alastrou por ambas as faces. Blocos de concreto despencavam por todo lado e, mesmo entre as espessas colunas de poeira que se erguiam no prédio industrial, Rachmed presenciava um espetáculo apavorante. Naqueles poucos instantes de caos, estrondo e terror, viu seus colegas desaparecerem sob as enormes placas que colapsavam. Sobrou uma fagulha de luz e de tempo para mirar Samira uma vez derradeira. Mas o que os olhos poderiam dizer à bem-amada num momento tão fugaz e dramático? Se a morte era pavorosamente iminente, em que outra coisa pensar senão no fim de tudo, na vida interrompida sem cerimônia nem despedida, no amor abortado, nos filhos que não nasceriam, em tantos sonhos de futuro ruídos pelas paredes que se desfaziam.  Num gesto final, Rachmed tentou proteger Samira contra os blocos que precipitavam, antes de sentir o concreto esmagar seu corpo e o ferro perfurar-lhe os órgãos.

Depois de um instante imensurável de inconsciência, Rachmed percebeu-se vivo, embora tudo à volta fosse escuridão e silêncio. Não sentia dor; pensaria estar morto se não fosse o ar carregado de pó a invadir-lhe o peito. As pernas, não as sentia, e os braços não obedeciam aos comandos; logo, era ali apenas uma alma aprisionada ao entulho de uma fábrica, sepultado vivo sob toneladas de ruína. Chamou por Samira, mas ela não respondeu. As mãos talvez ainda a tocassem, mas as sensações do tato haviam cessado junto com a ausência de dor.

Ao longe, passou a ouvir gemidos e gritos abafados pela montanha de destroços. No começo, eram vozes que, agonizantes, perturbavam-lhe, carregadas de desespero e sofrimento. Depois, uma a uma, silenciaram.  E aquele prédio, outrora ruidoso concerto de máquinas e vozes, era agora um silencioso e tétrico sepulcro coletivo, onde Rachmed se achava diante do mesmo fim de todos aqueles que tinham sido engolidos pela tragédia. E o silêncio, antes desejável, agora já não o era tanto; as vozes eram algum tipo de distração, ainda que macabra; o silêncio, no entanto, o afundava numa profunda sensação de solidão.

Sem a dor a golpear-lhe o corpo inerte sob o concreto esfacelado, as circunstâncias obstruíam-lhe os sentidos. Nada ouvia ou enxergava no breu de seu grande jazigo. E a supressão de sensações deixou-lhe entre a angústia e a exasperação. Mesmo sãos, olhos e ouvidos não captavam nenhuma referência externa do mundo.  Sentia-se visceralmente só e desamparado, como jamais estivera. Mesmo tantas vezes sozinho, nunca faltaram distrações para entreter-lhe o espírito. O mundo sempre lhe provera imagens, prazeres e sons com o que poderia preencher o tempo e a mente. Quando criança, tinha os brinquedos, os deveres, as travessuras, as surras, as noites sobre o colo da mãe, aquecidos pelo velho fogão a lenha. Adolescente, distraía-se com os amigos, as farras moderadas de um muçulmano, as tarefas de menino-homem, os olhares nervosos timidamente investidos sobre as jovens da periferia de Daca. Depois, tudo simplificara: eram só as horas na confecção, no ônibus entre casa e trabalho.  De resto, era Samira que lhe tomava o tempo e a alma. Samira, a jovem que um dia ele desposaria, ainda que nada houvesse entre ambos senão troca de olhares e insinuações. Mas seus gestos eram confessos, e Samira, mais madura, divertia-se com os gaguejos e rubores quando Rachmed vinha lhe falar.

Agora, porém, o futuro se esfarelava junto com aquelas paredes. Rachmed era um morto iminente. E apossado pelo pensamento da morte, misturado a toda aquela matéria inanimada e retorcida, sem a distração dos sentidos, sentiu um vazio abismal. Um vazio de mundo. Ali estava ele, e só ele, face a face com a escuridão incógnita. Passaram minutos. Passaram horas, e ele ali, oprimido pelo concreto e pelo destino. Cada vez mais vazio das coisas que haviam enchido sua vida. O medo já se cansara. A esperança se resignara com o desfecho. A ansiedade se dissolvera diante do inevitável.

Restou-lhe então encher-se de si.

Encheu-se do amor à mãe, santificada pelo marido embrutecido. Encheu-se da alegria pueril das brincadeiras infantis, das gargalhadas maliciosas entre os amigos do bairro pobre, dos banhos refrescantes no poluído Buriganga; encheu-se do sorriso intoxicante de Samira.  Foi assim, absorvido pela luz do semblante de sua bem-amada, entorpecido pela progressiva falência do corpo, que Rachmed distinguiu, entre os cheiros de pó e combustão, o perfume inconfundível de Samira. Foi assim que ele se entregou à sua última felicidade. Como os membros ignoravam seu comando, incumbiu à mente o esforço final.

Imaginou Samira a fitá-lo com aquela expressão curiosa, zombeteira às vezes, divertida pela timidez de Rachmed. E ele, num espasmo de espontaneidade que nunca tivera, abraçou-a inteiramente, como sempre desejara fazer, de um jeito que o mundo, pelas convenções sociais injetadas em si, sempre o tinha refreado. Mas, naquela solidão, no mais recôndito e obscuro dos cárceres, no mais derradeiro dos instantes de uma vida, ele gozou de sua maior liberdade. Rachmed, enfim, beijou Samira.

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