Van Gogh da Rosa

Eu conheci Van Gogh da Rosa, artista das tintas de quem o leitor possivelmente jamais ouviu falar. Talvez seja sina do nome, pois o gênio holandês que inspirou a mãe do xará brasileiro também não viveu o suficiente para gozar da fama e da riqueza de sua criação artística. Como a genialidade faz fronteira com a loucura, Vicent Van Gogh ficou demente, cortou uma orelha e deu cabo à vida, convicto, no seu último fôlego, de que realmente fora um fracassado e de que “a tristeza durará para sempre”.
A mãe desse anônimo pintor era gente simples, criada na roça. Era década de 40, “sertão” de Piçarras. Estranho ter escolhido nome tão incomum, mas o amor faz coisas que o diabo não duvida. Quando jovem, a alma ingênua de Maria das Neves se perdeu nos olhos de um forasteiro, um artesão que viveu em Piçarras tempo suficiente para vender algumas de suas peças e botar um filho na barriga daquela moça, que pensara ter aberto as pernas e o coração para o homem de sua vida.
Talvez até fosse, mas a morte não a deixou saber. O pai de Van Gogh – acho que se chamava Raimundo – amanheceu teso na cama do quarto emprestado pela paróquia. A jovem mãe solteira viu-se infeliz e desgraçada; preferiu sair de casa e morar no centro de Penha, onde limpava uma ou outra casa para sustentar o filho. A escolha do nome esdrúxulo foi puramente sentimental. No primeiro encontro, depois da missa, Raimundo lhe dera um cartão com os “Girassóis”, uma reprodução do famoso quadro do artista europeu cujo nome a jovem mal saberia pronunciar.
- Adoro Van Gogh! – arrematou o artesão galanteador, ostentando um suposto gosto pelas belas artes. Para Maria das Neves, que pouco sabia de seu amado, batizar o filho com aquele nome era reverenciar a grande paixão de sua vida, preservar a doce lembrança de Raimundo no fruto de seu amor.
Para Van Gogh, o nome célebre foi uma armadilha do destino. Quando criança, as professoras despertaram e atiçaram-lhe o interesse pela arte e notoriedade – embora póstuma - do ilustre xará. Logo, começou a rabiscar alguns desenhos e a tomar gosto pela pintura, sempre inspirado no mestre homônimo. Na adolescência, o talento já se manifestava exuberante nas telas.
Foi então que o nome tropeçou-lhe nos pés. Onde quer que fosse mostrar seu trabalho, distinguia, no olhar de marchands, o riso contido. Outros não tinham nenhuma comiseração. Explodiam em gargalhadas quando Van Gogh se apresentava, enquanto teimavam em perguntar se era apenas seu nome artístico. A verdade é que a indisfarçável origem simplória do rapaz, o português descuidado, o semblante assado pelo sol da roça, tudo isso fazia dele, aos olhos da classe artística, uma caricatura do mestre do pós-impressionismo.
Tratado como uma piada no meio artístico, Van Gogh da Rosa refugiou-se na casa dos avós, já senis, herdando as poucas terras da família. A mãe faleceu há pouco mais de dez anos, cancerosa, agarrada ao cartão dos “Girassóis”. Foi no sítio da família onde o conheci há alguns anos, já cinqüentenário. Espantei-me com as telas espalhadas pela casa simples, de madeira, pintada de laranja. Não sou entendido das artes, mas sua obra me pareceu transbordar vigor e originalidade. Depois de saber de sua história, perguntei-lhe se não cogitou trocar de nome ou omiti-lo, pelo menos até que a força criativa de seus quadros vencesse o preconceito artístico do qual fora vítima.
- Ate pensei – admitiu, afundando-se nas memórias. Explicou, depois que o desvario de Van Gogh lhe ensinara uma arte superior. Tinha se despido da vaidade que ensandeceu o gênio.
- Eu pinto pelo único motivo por que alguém deveria pintar. Eu pinto para não enlouquecer.
A arte, desvendara o anônimo pintor, tinha finalidade terapêutica. Num mundo de tão feios tons, a beleza multicor de suas telas construía um mundo paralelo, pelo qual a existência se tornava mais leve e suportável. Diferente do primeiro, Van Gogh da Rosa aprendera com a própria obra.

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