O velho da caverna

Nesses dias que antecedem a virada de ano, ante a expectativa de uma nova volta no calendário, as pessoas têm por hábito vasculhar as boas e más lembranças no baú do ano que finda. Parece-lhes a melhor hora de avaliar o ano, de fazer a contabilidade da vida. Depois disso, vêm as promessas para o novo ciclo; fulano vai parar de fumar, beltrano vai quitar todas as dívidas, sicrano será uma pessoa melhor.

Os primeiros dias de um ano são território da esperança e, não raro, da ilusão; porque é quase como se as pessoas acreditassem resetar a vida, como se o fim de uma conta de 365 dias lhes concedesse uma nova chance de acertar em seus propósitos de vida, apagando os tropeços do passado e experimentando a sensação de um novo começo. É sobre essa mania generalizada que gostaria de falar.

É pena que essa preocupação de passar a vida a limpo ocorra apenas uma vez por ano. É muito tempo para repensar a direção dos passos. Santo Agostinho, na sua receita de felicidade, sugeria que fizéssemos isso todos os dias; é o diálogo do travesseiro, quando a consciência busca ouvir os conselhos do velho sábio que habita as profundezas do ser. Não é de estranhar que, consultado só nesses dias do ano, o velho tenha se tornado um eremita. A triste verdade disso tudo é que, sendo essa disposição por mudança tão esporádica e fugaz, o espírito retarde o ritmo de sua marcha. Num extraordinário desperdício de tempo, acaba usando um ano inteiro para repetir os mesmos erros e daí, influenciado pela chama fátua de renovação que toma conta dos ânimos nesta época, dá-se conta de que é preciso mudar o script; uma vontade que logo costuma se diluir no automatismo a que se entrega na rotina dos dias seguintes.

Mudança é a arte da teimosia. Um espírito pusilânime tem dificuldade de mudar, porque é frouxo seu impulso, a força de mudar logo se esmorece no confronto com os velhos hábitos, os velhos medos, o velho eu. Quem deseja verdadeiramente mudar a própria sorte não espera o novo ano, induzido por uma comoção coletiva que não dura mais do que alguns dias. Mas longe de mim maldizer os votos de um novo ano. No mínimo servem para lembrar, uma vez ao ano, que mudar é preciso.

Enquanto isso, o velho sábio aguarda na caverna escura, pronto para sussurrar verdades. Não esperem que antecipe o futuro, que preveja a promoção no emprego, a nova paixão que reluzirá nos olhos, ou o desdobrar de eventos transformadores na vida. O velho falará de sonhos. E dirá que o terreno onde eles germinam não é outro senão o tempo presente. Sim, é no instante do agora onde os sonhos ganham vitalidade. Porque é preciso que cada dia seja uma declamação poética desse sonho, que sopre vontade na caminhada do espírito e transmita energia aos seus pés. Sonhos que se esfumaçaram no tempo foram sonhos que não habitaram o presente. Permaneceram num território distante, tão distante que seu perfume se perdeu no vazio, incapaz de sensibilizar as forças da alma.

Assim ocorre com aqueles que creem pertencerem os sonhos ao futuro. É um engano estrondoso. Porque os sonhos são como quaisquer manifestações de vida. Embora nossos olhos não vejam a pequeneza da célula mater de um organismo, ela já existe, está presente algures, multiplicando-se até, tempos depois, constituir um ser percebível à visão. Antes de ser, ele já era. Os sonhos são assim também. Nascem no segredo do espírito, e ali se desenvolvem dia a dia, até ganharem a substância de realidade. E diferente do que acreditam os mal-informados, sonhos não são uma colheita do amanhã, porque, desde quando eclodem, eles se prestam a uma finalidade útil: conferir beleza à vida. Sonhar, por isso, é tão importante quanto o próprio sonho. É o exercício constante de uma fé.

O sonho é a bússola da alma na vastidão da vida. Com tantas indicações de rota que acabam por conduzir o homem a destinos infelizes, ele aponta para o caminho da felicidade. E ainda que, às vezes, esse caminho seja delusório, pois o homem deixa o sonho influenciar-se pelo magnetismo de desejos da matéria, o homem estará, de qualquer maneira, atrás de seu impulso primordial, sua vocação cósmica, a de ser feliz. Encontrar o caminho verdadeiro é uma questão de tempo e pureza.

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