Sobre a Mentira


Toda mentira nos viola o orgulho. O que poucos admitem, entretanto, é que em muitas delas há o vapor de nossas próprias vontades e expectativas. Sim, somos cúmplices de muitas mentiras de que nos alegamos vítimas. Isso porque vivemos num mundo de mendicância. Suspiramos pela promessa de um amor, de uma alma que nos devote suas energias e seus sonhos. Há uma desastrosa dependência do amor alheio. E assim é porque, na escassez de autoestima, o ser põe-se disposto a metamorfosear-se, a vestir-se com as imagens que outros lhe projetam.
Para assegurar a migalha de um amor, a alma passa a hospedar um visitante dentro de si, que é a encarnação do desejo de quem ela espera ser amada. Há um jogo de forças invisíveis e, quase sempre, despercebidas. Enquanto um apresenta, na sutileza das entrelinhas e dos gestos, a imagem idealizada de quem deseja amar, o outro esforça-se por corresponder ao papel que lhe é proposto. Aceita personificar a adorável mentira em que o outro quer acreditar.
Não é um teatro necessariamente ruim. Há quem, pela força do hábito, torna-se uma pessoa melhor, transformada pela encenação diária. Afinal, somos criaturas produzidas pela disciplina de uma vontade. Há amores que operam milagres. Lembro-me agora de Esteban Trueba, do best-seller “A Casa dos Espíritos”, da chilena Isabel Aliende, homem desenbrutecido pela doçura da esposa Clara, depois de ela lhe impor um silêncio vitalício como punição por um gesto de truculência. O amor o fez domar sua besta; o exercício da mansidão pacificou um coração tanto tempo enfurecido.
Mas há amores, e quiçá sua maioria, que, introduzidos nesse jogo de carências, não acabam tão bem. Os papéis se esfarelam com o tempo. Quem antes se submetia à fantasia, agora se rebela contra a mentira que ele próprio ajudou a urdir. Ex-amantes se acusam reciprocamente. Confusos, desconhecem-se. Veem diante de si um estranho conhecido. A dificuldade em admitir todo esse mise em scène está no simples fato de que não há um esforço deliberado. Os casais apaixonados fabricaram a deliciosa ilusão sob o torpor inebriante dos gozos. Mas qual luz que foge pelas gretas, a verdade também escapa pelos poros. Pouco a pouco, dia após dia, ela expõe toda a nudez, e tanta vez, sua insuportável feiura.

Comentários

Postagens mais visitadas