As férias de Gibran

Podem achar que é exagero, mas vou usá-lo mesmo assim para defender a tese heterodoxa. As férias são um remendo capitalista, uma compensação para um contínuo desprazer do trabalho com o qual o homem se vê compelido a conformar-se, por força de suas necessidades – as reais e as imaginárias. Dá o couro e a alma para um trabalho que até pode lhe emprestar algum prazer, mas que muitas vezes não está nem na tarefa em si, mas nas satisfações que sua remuneração poderá sustentar. Sabendo que ninguém é de ferro, o capitalismo institucionalizou as férias, um despressurizador de tensão. Aos ouvidos do pobre humano sujeito à ditadura do capital, soa-lhe uma mensagem subliminar: Trabalha e não te queixes! Logo virão as férias, teu consolo está garantido!

Quando penso em trabalho, no seu conceito mais transcendental, lembro-me do lirismo de Khalil Gibran, um poeta-artista que, supondo-se pelo que escreveu, nunca teve férias. Ele dizia o que para muitos parecerá piegas. O trabalho, sonhou o libanês, é o amor feito visível. E se assim é, quem desejaria o gozo das férias se o gozo está, afinal, no trabalho? Quem iria ansiar o descanso, se o prazer está no movimento? Só vou discordar da sugestão que Gibran dá aos que não trabalham com amor: “Melhor seria que abandonásseis vosso trabalho e vos sentásseis à porta do templo a solicitar esmolas daqueles que trabalham com alegria”. Tropeçar sobre milhares de esmoleiros amontoados na calçada da Matriz, convenhamos, seria mal pior que as milhões de almas silenciosamente aborrecidas em seus empregos, à espera de um sopro de vida na delícia de suas férias.

Nem tudo, porém, está perdido. O capitalismo está longe de universalizar o trabalho com tesão, mas há sinais de uma fumaça diferente no horizonte. Um italiano, que já foi até “velho-propaganda” de Santa Catarina, anda dizendo que, no futuro, o trabalho será como no sonho de Gibran, uma fonte de prazer. Domenico De Masi profetiza que isso acontecerá à medida que o trabalho humano dependa mais do exercício criativo, que não está condicionado ao tempo nem à produtividade, dois fatores fundamentais da atual lógica capitalista. A criatividade é necessariamente um processo prazeroso. Sem alegria, a alma não dá à luz o novo. Eis, portanto, a ironia a que o futuro submeterá o capitalismo. Precisando de humanos mais criativos, o sistema que hoje professa o “tempus fugit” (o tempo corre) ou o “time is money” terá de trocar de mote. Para sobreviver ao tempo, o capitalismo será obrigado a adotar o lema do “carpe diem” (aproveite o dia) e admitir que Gibran estava certo.

Na prática, imagino que um dia chegará em que uma editora de jornal, analisando a produção do colunista e percebendo vestígios de mediocridade e de criatividade esgotada, dirá ao profissional de olhar meio esvaziado: “Vá para Nova Iorque, freqüenta alguns bares do Soho, conversa com os negrões do Bronx, e volta. Preciso de ti mais criativo”. É um novo exagero, mas serve pra ilustrar o ponto.

Sei que já há afortunados que gozam dessa vida na qual trabalho e lazer se mesclam numa fecunda simbiose. No entanto, para milhões de nós, trabalho e prazer são quase dois estranhos que se encontram ocasionalmente. Há, por outro lado, quem resiste à idéia de férias perenes, pois compreendem que o gozo vira tédio numa vida que, sem trabalho, se torna estéril. Porque da mesma forma que todo trabalho sem amor se esvazia na desilusão, todo o prazer se esgota na inutilidade de seu deleite. Para subsistir, o prazer precisa trabalhar.

Comentários

Liz disse…
Não importa, mas provoca minha curiosidade... desde quando nos conhecemos mesmo?

QUERIDO AMIGO AMADO

"[...] se é necessário vá, não se demore, preciso-me inteira e sem o que carregas de mim torna-se humanamente penoso se for por muito tempo, usarei do represado até que volte, fundamental é ter você por perto.[...]"

Obrigada! Liz

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